O dia 28 de junho é considerado o Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+. A data faz referência à revolta acontecida em 28 de junho de 1969 no bar Stonewall Inn, em Nova York, nos Estados Unidos. Esse bar ficava em uma região conhecida como gueto homossexual e foi invadido por policiais, que costumam fazer batidas lá, com o objetivo de conter o agrupamento de pessoas lgbts no local. Contudo, os frequentadores resistiram bravamente ao ataque da polícia, originando uma batalha durante todo o final de semana. A luta empreendida pelo grupo chamou atenção para a situação que ele se encontrava e desencadeou uma maior organização política para reivindicação de direitos.
Os ecos da revolta de Stonewall alcançaram a América latina e inspiraram movimentos sociais e políticos de gays, lésbicas e transgeneros. No Brasil, a primeira organização política de ativismo homossexual surgiu em São Paulo e até hoje a cidade tem um grande protagonismo na luta por direitos LGBTs, sendo a sede para um dos maiores encontros de pessoas LGBTs do mundo, a Parada do Orgulho LGBT+ de São Paulo que celebrou neste ano sua 25º edição. E uma pergunta reverbera em minha mente: como é a vida de pessoas LGBTQIA+ fora dos grandes centros, onde nem sempre a temática recebe o apoio que merece. Para tentar compreender um pouco mais sobre como se dá a vivência LGBTQIA+ nos interiores do Brasil, tive o privilégio de conversar com cinco pessoas que dividiram comigo suas histórias e experiências.
Elder Luan é gay, natural de Ponto Novo, cidade do interior da Bahia com cerca de 18 mil habitantes, e conta que passou uma boa parte de sua juventude no armário. Segundo Elder, “não haviam espaços de sociabilidade LGBT, não existiam discussões, movimentos sociais, nem qualquer tipo de perspectiva que positivasse a dissidência sexual”. Nesse sentido, somente quando começou a cursar História na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), em Cachoeira, BA, que ele conseguiu viver sua sexualidade com um pouco mais de liberdade. Embora Cachoeira também seja uma cidade do interior, devido a presença da universidade, há mais pessoas LGBTQIA+, mais espaços e possibilidades de vivência afetiva-sexual, de sociabilidade, e de ampliação do conhecimento sobre as questões de gênero e sexualidade.
Elder, por performar seu gênero de um jeito diferente do que é socialmente esperado e imposto, vivenciou o preconceito desde criança. Ele relata que “desde muito novo, quando ainda não tinha sequer noção sobre essas questões, as pessoas já me apontavam como ‘veado’ (expressão que por muito tempo foi utilizada como insulto para se referir a homens gays).” Esse tratamento hostil que pessoas lgbts enfrentam demonstra o quanto o simples fato de ser quem se é pode ser extremamente difícil para pessoas LGBTQIA+.
Ter relação afetivo-sexual fora da heteronormatividade ainda é algo mau visto por grande parcela da sociedade. Tanto que o Brasil é um dos países que mais matam LGBTs no mundo. Assim, o preconceito acaba limitando e condicionando as relações homoafetivas ao sigilo. Na cidade em que Elder morava não haviam motéis e mesmo que houvesse não seria possível que pessoas LGBTs residentes frequentassem sem serem hostilizadas.
Elder só falou sobre sua orientação sexual para sua família quando já estava no mestrado em 2015. Até então, sempre que ia à Ponto Novo era como se voltasse para o armário. Desde a graduação, o estudante se dedica às temáticas LGBTs e hoje é doutorando pela Universidade Paris 8, em Paris, e investiga os movimentos antigênero no Brasil e na França. Elder acredita que a educação é o caminho para superação desses preconceitos e mudança dessa realidade que aprisiona pessoas LGBTQIA+. Nas palavras dele: “mesmo com um maior acesso às informações sobre essas questões, a escola ainda falha ao não assumir esses debates de maneira responsável. As violência de gênero, as LGBTfobias, o machismo, a misoginia, entre outras violências, continuam a permear o espaço escolar e a constituir a formação das pessoas. É importante que a gente fale, discuta e reflita sobre essas questões desde o ensino básico, eu acho que só assim a gente vai conseguir construir uma perspectiva de superação das violências, seja no interior ou na capital.”
Cafrê é travesti, jornalista e produziu vários documentários, entre eles o "EMPREENTECER" com o canal Futura com a Globo Play participou da produção de "Cercados". Atualmente, ela trabalha como Editora Chefe na TCM, Tv Cabo Mossoró, maior grupo de comunicação do interior do estado. A jornalista, nascida em Russas, Ceará, teve um dos momentos mais marcantes de sua história quando se entendeu como pessoa trans, durante a produção do documentário TRANSformar - Existindo na Educação. Na infância, Cafrê conheceu apenas dois gays que, infelizmente, foram alvo de deboche e críticas por muitas pessoas. O tratamento hostil dessas pessoas a fez desenvolver um medo de se mostrar à sociedade como ela realmente é.
As trajetórias de pessoas travestis são, em sua maioria, marcadas por violências, abandonos, incompreensão e preconceito. Felizmente, Cafrê foi compreendida e acolhida pela pessoa mais importante de sua vida, sua mãe.
A jornalista teve uma experiência em São Paulo e ao contrário de muitos LGBTQIA+ que sonham em ir para grandes cidades para viver com mais liberdade, ela relata que, embora tenha se sentido mais corajosa por estar mais distante da família, sentiu saudades da rede de afeto que construiu em Mossoró, onde trabalha, iniciou seu processo de transição e vive atualmente. Cafrê conta que se sentiu muito sozinha em São Paulo, que não conviveu com muitas pessoas trans e que a convivência com pessoas cis foi um tanto adoecedora, visto que ela se sentia pressionada para se parecer com uma mulher cis e não com uma travesti. Cafrê ressaltou: “Eu sou uma travesti. Então, tudo bem parecer com uma travesti, porque também é bom.”
Além do momento em que se entendeu como pessoa trans, outra situação que marcou Cafrê foi o início da terapia hormonal. Ela conta que teve dificuldade para lidar com alguns efeitos do hormônio no corpo e com a mudança nos olhares da sociedade em virtude das transformações em seu corpo. Os olhares agora de reprovação tentavam entender quem ou “o quê” é aquela pessoa que não se encaixa nos padrões impostos socialmente. Esse momento foi bem difícil e Cafrê se privou de sair para evitar a ansiedade que a situação causava.
Cafrê conta que precisou sair do interior para entender que tava tudo bem ser quem é, já que ter tantas opiniões e “holofotes” sobre seu corpo lhe desencorajava, e orienta as pessoas LGBTQIA+ que se encontram nesses espaços a respeitarem o próprio tempo e a esperarem o melhor momento para tomarem decisões importantes, como iniciar a hormonização, por exemplo, já que algumas famílias e espaços podem ser extremamente agressivos e violentos.
Cleyton Feitosa, natural de Caruaru/PE, é gay, Pedagogo, Mestre em Direitos Humanos e Doutorando em Ciência Política pela Universidade de Brasília, UnB. Durante um período de sua vida acadêmica, ele escreveu sobre políticas públicas e hoje se dedica ao estudo da presença de LGBTI+ em partidos políticos.
O doutorando conta que compartilhar sua sexualidade para sua família foi uma experiência ruim e libertadora. Para fazer uma espécie de equilíbrio entre orgulho e uma possível decepção, ele deixou para dar a notícia após ser aprovado no vestibular.
Cleyton acredita que ser do interior pode ter afetado sua vida trazendo dificuldades de auto aceitação, de capacitação profissional e também acolhimento por parte da comunidade que o cercava. Ele enfrentou muitas situações de preconceito em diversos lugares, desde a família e a igreja Católica, que frequentava, às festas locais. "A heteronormatividade funciona como uma norma geral que oprime e sufoca em quase todos os ambientes e espaços que circulamos”, destacou.
Para ele, é importantíssimo que pessoas LGBTQIA+ ocupem os movimentos sociais, os coletivos e os partidos políticos para além de transformar as estruturas da sociedade que ainda são extremamente violentas à comunidade, construir o empoderamento que se faz necessário no enfrentamento da LGBTfobia no cotidiano. Cleyton ressalta que “a participação política constrói um senso de cidadania, amplia redes de contato com parceiros e aliados, que contribuem muito para driblar as desigualdades sociais. É uma escola riquíssima de aprendizagens”.
Para que LGBTs possam viver sua sexualidade com mais liberdade, Cleiton enfatiza a necessidade do desenvolvimento de políticas públicas voltadas para essa minoria, investimento em educação e na punição de pessoas que violentam física ou psicologicamente pessoas LGBTQIA+.
Isabela Carpinski é de Camanducaia, Sul de Minas Gerais, e durante bastante tempo lutou contra a sua sexualidade. Ficar com meninos e falar sobre meninos foram estratégias que ela encontrou para não ser notada ou identificada como uma menina que gostava de meninas e sofrer preconceitos por conta disso.
No seu último ano em Camanducaia, ela decidiu que viveria o que tivesse vontade de viver. Foi então que deu seu primeiro beijo em uma menina. Esse momento importante, infelizmente, traz marcas dolorosas. Quando a mãe de Isabela descobriu, ela ficou uma semana sem falar com a filha e chegou a confiscar o celular e a proibi-la de sair de casa. Esse último ano foi marcado por apontamentos e julgamentos, principalmente na família. Na cidade, fotos dela e da ex-namorada eram enviadas para grupos de WhatsApp para serem xingadas e zombadas e homens na rua faziam comentários obscenos quando as viam juntas. As violências que sofreu e as que ouviu falar, não permitiram que Isabela se sentisse acolhida em Camanducaia. Ela pode viver com mais liberdade quando deixou a cidade.
Felizmente, hoje, a relação da mãe e da filha é envolta por aceitação e respeito. Elas conversaram e conseguiram juntas vencer o preconceito dentro de casa.
Isabela acredita que o fortalecimento da comunidade LGBTQIA+ no interior, em um movimento de acolhimento, é uma das medidas principais para que essas pessoas possam se sentir acolhidas e terem mais liberdade nesses espaços. Isabela é lésbica, estudante de Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora, UFJF, e podcaster no Podcast Que Interessa - voltado para sexualidade, vegetarianismo e feminismos.
Amarildo Inácio, gay, doutorando em Educação pela Universidade Federal da Bahia, UFBA, cresceu em Presidente Getúlio, interior de Santa Catarina. Ele começou a perceber que não correspondia às exigências da sociedade para o seu gênero ainda criança e conta que era chamado de viado, boiola e baitola por outras crianças. O preconceito que vivenciava o fez perceber que era diferente das demais crianças, embora não soubesse como, e que seria muito humilhado por isso. Além disso, ela relata que cresceu ouvindo que ser uma pessoa LGBT era pecado, era imoral, era algo sujo e nojento. O pai dizia que preferia um filho morto a um filho homossexual e para os amigos a homossexualidade era motivo de zombaria. “Quando você sabe que você é e ouve isso, inclusive de pessoas próximas, sem poder reagir é muito agressivo”, destacou.
Amarildo foi compreendo sua sexualidade na escola. Assim como muitas crianças e jovens, não teve assuntos ligados ao sexo e à sexualidade abordados em casa, e para não ser associado aos meninos afeminados, característica reprovada socialmente, ele passou a reproduzir homofobia. O comportamento adotado, todavia, não impedia a vigilância ou controle das pessoas por sua sexualidade. Ele ressaltou: “principalmente na adolescência, momento no qual eu não ficava com ninguém e isso era exigido de mim. Então, passei por isso tudo sozinho e desenvolvi um sentimento de negação. Não queria ser gay. Ouvia que era uma escolha e ‘escolhi’, mas claro que não funcionou”.
O doutorando em Educação nunca se sentiu acolhido em Presidente Getúlio e conseguiu ir embora em 2011. Amarildo acredita que a educação é um caminho poderoso para que pessoas LGBTQIA+ possam viver com mais liberdade. Ele destacou: “ é onde você pode colocar as diferenças em diálogo mediado por professores. Para isso, a importância de formar bons professores que, gradativamente, vão transformando o cenário das cidades. Acredito que a transformação virá com um trabalho lento e levará algumas gerações para que o cenário mude significativamente nesse sentido.”
Você pode conferir mais sobre vivência LGBTQIA+ no interior nesse link:
http://wix.to/KcDIDSE?ref=2_cl
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