A exclusão de pessoas trans do mercado de trabalho e os desafios enfrentados no país que mais mata travestis e transexuais no mundo
Por Mateus Leri
Bandeira do Orgulho Trans
(Foto: Internet)
Brasil. Reconhecido por sua mistura de cores, gêneros e etnias, mas que revela- se um dos países mais violentos para a população LGBTQIA + no mundo, especialmente para pessoas transexuais e travestis. Pelo 13° ano consecutivo, o Brasil lidera o ranking de assassinatos de pessoas trans. Segundo dados da ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), no primeiro quadrimestre de 2020, houve um aumento de 48% das mortes dessa parcela da população brasileira. No primeiro semestre deste ano, o país Brasil registrou ao menos 80 assassinatos de pessoas transexuais, segundo relatório da Antra. O levantamento aponta ainda que ocorreram nove suicídios, 33 tentativas de assassinatos e 27 violações de direitos humanos nesse mesmo período. Além de toda a violência e exclusão enfrentados diariamente, muitas pessoas trans e travestis não conseguem trabalho formal e reconhecimento de seu nome social, sendo obrigadas a se submeter a condições precárias de sobrevivência, que vão desde a prostituição e tráfico de drogas até trabalhos informais. Ainda de acordo com o ANTRA, com base em dados recolhidos em diversas regionais da entidade, aproximadamente 90% das pessoas trans já se prostituíram em algum momento da vida.
Dados sobre o assassinato de pessoas trans no primeiro quadrimestre de 2020 (Foto: ANTRA)
Mas, em meio à uma onda de conservadorismo por parte de algumas camadas da sociedade, existem pessoas que conseguem burlar o sistema, resistir à heteronormatividade e ocupar espaços de destaque e representatividade. Uma delas é Bruna Leonardo, de 40 anos. Natural de Belo Horizonte-MG, atualmente trabalha como recepcionista na casa de cultura Tenetehara, em Juiz de Fora. No momento em que cheguei para entrevistá-la no local onde trabalha, ela me recebeu com muito esmero. Sentou-se em sua mesa para terminar o registro de contas do estabelecimento, enquanto algumas crianças e adolescente chegavam para algumas atividades oferecidas no local, como aulas de teatro, música, entre outras atividades culturais. Durante toda a conversa, ela entrelaça os dedos e, de forma muito calma e descontraída, me conta sobre suas idas e vindas, encontros e desencontros até assumir sua identidade de gênero. “Falo que minha história é uma ópera. Ainda mais eu, que sou dramática.”, explica.
Sempre se identificou com o universo feminino. Não que não brincasse de carrinho, peão ou bola de gude, mas sentia-se mais confortável com os signos relacionados à feminilidade. Aquelas brincadeiras violentas, executadas pelos meninos, nunca foram seu forte. “Eu sempre fui uma pessoa de sentir as coisas. A sensação era tão forte, era tão grande, mas eu não conseguia problematizar aquela sensação”, afirma. Apaixonada por novelas e super-heroínas de sua época, como Feiticeira do He-Man, durante toda sua vida teve como espelho mulheres à frente de seu tempo, que iam de encontro à toda forma de repressão e violência às quais eram submetidas.
Desde pequena, sempre foi muito tímida. Seus pais, até então, não enxergavam nenhum problema ela estar com meninas. Em casa, na escola e na sociedade. Cada dia que passava, sua feminilidade se exacerbava de forma tão intensa, que reverberava contra ela em forma de discriminação. Começou a sofrer homofobia aos 10 anos de idade. Em casa, seu pai corrigia sua postura, gesticulações e maneiras de se expressar. Tinha medo de entrar em banheiros masculinos, por acreditar que poderia sofrer algum abuso sexual. Como nunca teve amigos de infância, visto que seus colegas nunca se aproximaram dela, sempre foi muito isolada. “O auge do preconceito chegou aos 8 anos, numa escola particular aqui de Juiz de Fora. Por ser tão feminina, era bullying na escola, em sala de aula. Eu nunca saí da escola porque achava que, se saísse da escola, na outra poderia apanhar.” indaga ela, que se ajeitava na cadeira para continuarmos aquela conversa.
Nunca se enxergou como errada perante a sociedade. A maioria das pessoas trans acreditam que são um ser desviante, que estão pecando diante de Deus. São vítimas de um discurso opressor e socialmente construído, no intuito de marginalizá-las. Seu sofrimento foi tentar entender o motivo de tanta agressividade. Sua descoberta se deu no período da puberdade, momento em que começou a sentir atração por homens. Nunca se rejeitou e sabia que tinha o direito de ser quem era. Entretanto, a princípio, não teve a quem contar sobre aquela situação. Através das histórias de Roberta Close, personagem midiática e mulher trans que fez história na televisão brasileira, o desejo de passar pela cirurgia de redesignação sexual sempre foi muito forte, mas a falta de recursos até então sempre foi um empecilho. “Por mais que você seja forte; por mais que você saiba que não está agindo errado, isso mexe com a gente. Por exemplo, eu estava sozinha, e não podia me abrir com ninguém.”, informou ela. Em dado momento, me contou que só aos 19 anos foi ter convívio social com pessoas. E as meninas, com quem fez amizade, já enxergavam nela sua essência, muito antes de saberem que era uma pessoa transexual. Foi convidada para uma festa de formatura de uma dessas pessoas que cursava Direito e viu-se muito incomodada, pois ainda não havia assumido sua identidade de gênero e teve que ir de terno. Não quis aparecer nas fotos e as únicas recordações que sobraram foram memoriais, mas não fotográficos. Conta que suas amigas, longe das outras pessoas, começaram a chamá-la de Bruna, que não foi ela que escolheu seu nome social. Tudo isso aconteceu em 2005.
No final do mesmo ano, uma dessas amigas ficou sabendo que estavam realizando o procedimento cirúrgico no Rio Grande do Sul, pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Viu ali uma oportunidade, visto que não sabia quando e como poderia juntar dinheiro para realizar a operação. Não tinha curso técnico, estava desempregada, e havia concluído o segundo grau de forma tortuosa, chegando a repetir duas vezes, devido à violência sofrida no ambiente acadêmico. E, além disso, não se enquadrava no perfil esperado pelo mercado de trabalho. E foi a partir desse momento que procurou o MGM (Movimento Gay de Minas), para que pudessem ajudá-la no processo transexualizador. A ONG imprimiu algumas reportagens sobre identidade de gênero e que relatam a história de outras pessoas que passaram pela operação. No ano de 2006 se assumiu para a família; em 2007 iniciou o acompanhamento psiquiátrico e, posteriormente, o tratamento hormonal. No ano de 2009, pegou o laudo para a cirurgia, que constava que ela tinha transtorno. Seu processo de transição durou 10 anos e seu maior problema foi a barba. Nem os hormônios inibiam o crescimento chegou a entrar em depressão, fazendo uso de remédios até hoje. O que a salvou foi saber que tinha o direito de ser feliz. Conta também que a doutrina espírita ajudou, de alguma forma, a encontrar a paz que precisava. “Além do preconceito, tinham outras questões que eu desejava transformar, para estar em paz com meu corpo e minha imagem refletida no espelho”, afirma.
Em janeiro de 2013, foi convocada para realizar a cirurgia no Hospital Universitário Pedro Ernesto, da UERJ. Contou que o pós-operatório foi difícil e ficou três dias sem se movimentar. Como não tinha família no Rio de Janeiro, uma amiga ficou ao seu lado por 6 dias. Como não era menor de idade, muito menos maior de 60 anos, não poderia ficar todo esse tempo. Mas, após conversar com os responsáveis, conseguiu permanecer esse período de tempo no hospital. “Não teria ninguém para ficar. E isso mexe com a gente.”, relata emocionada. Informa também que fez operação com barba e que, em maio, iniciou os procedimentos a laser para a retirada definitiva dos pêlos. Em 2014, um novo ciclo se iniciou. Estava com um corpo próximo do universo feminino, sem barba e operada. Com o tempo, aprendemos a desconstruir os estigmas de gênero, beleza e feminilidade, entendendo seu corpo. E, nessa luta, ela teve que entrar na justiça para a garantia de seu nome social, do acesso à harmonização e aos procedimentos a laser. E foi nessa corrida, que ela começou também a militância. A entender que sua luta também era a luta de muitas outras pessoas que buscavam os mesmos direitos. “Assim como me estenderam a mão, outras pessoas precisavam que as estendesse as mãos”, explica. Bruna também relata que muitos LGBTQIA+ não se aceitam e acabam por comprar o preconceito, culminando na violação de seus próprios entes queridos. Ninguém precisa ser LGBT. A gente não tá pedindo para ninguém ser igual a gente né? A gente tá pedindo para que respeitem nossa diversidade”, explica.
Ao final da nossa conversa, pergunto sobre como trabalhar em uma casa de cultura na desconstrução dos estereótipos que sociedade têm sobre pessoas transgêneros. Ela conta que foi um presente e que ficou 10 anos sem trabalhar de carteira assinada e que só exerceu uma função durante dois anos, junto de seu pai. Relata que nunca foi chamada para uma entrevista de emprego. Atualmente coordena o grupo Força Trans, que auxilia outras pessoas transexuais e travestis. "A maioria das pessoas que chegam e percebem que eu sou trans, é a primeira trans que eles estão vendo com trabalho formal”, relata. Ela percebe todos os olhares dos indivíduos que vão à casa. “Quando você mostra para as próprias pessoas trans que elas podem ocupar qualquer lugar, isso é muito importante. Mostra que a prostituição não é o problema. Ela só não pode ser a única e exclusiva maneira de a pessoa sobreviver”, disse orgulhosa. Minha última pergunta foi o que a Bruna de hoje em dia diria para a mesma 10 anos atrás. Com um sorriso no rosto, conta que valeu cada esforço. Valeu ter enfrentado a sociedade na busca por reconhecimento e respeito. “A pessoa pode ser quem ela quiser. Eu acho que os nossos corpos nos pertencem e a gente pode fazer o que quisermos com eles, eu acredito na liberdade dos corpos né, na liberdade das pessoas. Não é que é fácil, a gente tem que correr muito atrás ainda se esforçar né, se capacitar quando consegue. Mas a gente tá aí né, abrindo portas.”, relata Bruna.
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