Instigadora de crises e acentuadora de transtornos, a pandemia da Covid-19 também expôs as vulnerabilidades da saúde mental da sociedade brasileira.
Em fevereiro de 2020, enquanto a Europa e a Ásia já registravam centenas de casos do novo coronavírus, o Brasil ainda comemorava, com trios e festa, o carnaval. O primeiro contaminado em solo brasileiro foi identificado no final do mês (26) em São Paulo, mas a notícia - mesmo alarmante - não surtiu efeito imediatamente. No início do que cotidianamente englobamos como pandemia, a sensação era de que tudo estava controlado; as tragédias mundo afora eram distantes da nossa realidade imaculada; o cenário de desespero estrangeiro não conseguiria vingar aqui. As escolas e faculdades suspenderam as aulas por, inicialmente, quinze dias, dando esperança de que superado esse período a normalidade retornaria. Contudo velozmente os casos se multiplicaram. A confirmação da primeira morte pelo novo coronavírus ocorreu pouco depois, no dia 17 de março.
Naquele momento, a urgência de adotar medidas restritivas tomou corpo e espaço nas mídias. Em pouco tempo, os serviços não essenciais foram paralisados e uma nova maneira de se relacionar com a profissão surgiu para muitos brasileiros. O home office, expressão tão comum durante o período de isolamento social, permitiu que os cidadãos pudessem se manter ativos em seus trabalhos, mas em casa - longe dos riscos da contaminação iminente. E se a definição dessa expressão é tão simples, traduzido muitas vezes para “escritório em casa” ou “trabalho realizado em casa”, a realidade se mostra complexa. Não foi apenas uma questão de exercer uma profissão por telas ou lidar com obstáculos tecnológicos ou conciliar tantas demandas da família em um local restrito, mas também se configurou um duelo duradouro com a saúde mental.
Nos países nórdicos, próximos ao Polo Norte, durante 6 meses o sol se mostra o dia inteiro. O fenômeno sol da meia-noite parece, aos habitantes mais ao sul, uma ficção, algo inconcebível. É estranho e confuso pensar que não há a transformação das cores no céu, que segue a mudança de segundos, minutos e horas. A sensação é de que não há divisão entre dia e noite. Na pandemia, mesmo com a normalidade do sol, que nasce e se põe, e da lua, que ostentava seu brilho, a noção era de que os dias não passavam. Contávamos os dias, riscando no calendário ao fim de 24 horas, mas não notávamos a diferença do dia anterior para o que se apresentava à nós. E assim a vida prosseguiu por um tempo considerável, quando tudo parecia congelado no tempo, mesmo que ele passasse rápido demais para alguns.
A desesperança se originou em muitas mentes brasileiras. Os recordes no número de óbitos, noticiados a cada dia pelos mais diversos veículos de comunicação, junto à produção de vacinas que parecia não progredir impulsionaram os pensamentos mais pessimistas, os quais deixavam uma infinidade de preocupações na cabeça de tantos indivíduos; alinha-se a isso, a perda de pessoas queridas ou conhecidas para uma doença tão poderosa que paralisou o mundo inteiro. Uma inquietação constante, que derivava de tantas variáveis, deteriora até a mente mais saudável.
Legenda: Segundo dados de 2019 da Organização Mundial da Saúde, o Brasil tem o maior número de pessoas ansiosas no mundo: 18,6 milhões de brasileiros, o que representa 9,3% da população.
A Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) divulgou em um estudo, no ano passado, que 80% da população ficou mais ansiosa. A análise, que contou com 1996 pessoas, foi realizada no período de maio a julho. Para que se tenha um comparativo com a situação daquele momento, no dia 06 de junho de 2020 eram 35 mil mortes confirmadas e aproximadamente 600 mil casos. A pesquisa ainda ressaltou que, em outros países, esse índice de ansiedade chegou, no máximo, a 30%. Tendo em vista o histórico brasileiro em estudos desse transtorno, sendo o Brasil considerado o país mais ansioso do mundo pela OMS, o número apresentado pela UFRGS não surpreende, mas estarrece profissionais da psicanálise e representa o que tantos brasileiros sofreram e ainda sofrem. Frente às inquietudes da mente e aos reflexos delas no organismo, muitas pessoas, que nunca haviam passado pelo processo terapêutico, buscaram o auxílio de psicólogos durante a pandemia. “Com certeza, as pessoas que não estão fazendo hoje o processo terapêutico em algum momento farão e falarão sobre esse momento, porque é um momento traumático social”, afirma Viviane Antunes, psicanalista que destaca o potencial negativo de todo esse período para a saúde mental coletiva.
Qualquer menção à terapia ou à análise ainda carrega um peso de estereótipos ultrapassados, mas vigorosos que desestimulam a procura por ajuda profissional. Em um momento de crise, que se alinhou a tantas outras problemáticas no país e possivelmente às individuais de cada cidadão, foi necessário aceitar as vulnerabilidades e dificuldades, objetivando o bem-estar pessoal. “O que sinaliza uma pessoa de que ela precisa ir ao dermatologista é uma lesão na pele. O que sinaliza para o sujeito que ele precisa ir para o processo terapêutico/analítico é a angústia”, diz ela. E ressalta: “Quando a gente fala de angústia, as pessoas têm a sensação de que é algo muito agudo. E eu estou falando de um incômodo, de algo na nossa vida que pode não estar de forma aguda, mas de forma longa. Tem certas situações que vão nos incomodando durante muito tempo e em algum momento você fala ‘bom, não posso mais passar disso, não posso dizer que não estou vendo, eu preciso lidar com isso”. A constante demanda por acompanhamentos psicológicos demonstra, ao menos, que uma camada do tabu se esfacelou, exibindo um extenso grupo de indivíduos que desejam se entender melhor e se relacionar melhor com o mundo e consigo mesmo.
Um vírus altamente contagioso deixou sua marca até em pessoas que escaparam do contágio. No cenário brasileiro, é comum conhecermos alguém - de um familiar até um mero conhecido - que faleceu em decorrência das complicações da Covid-19. Com mais de 500 mil mortes, inúmeras pessoas viram os óbitos se multiplicarem em suas próprias famílias. A experiência do luto, algo tão exclusivo e ímpar, se transformou no período pandêmico. Para Viviane, “a impossibilidade de acompanhar os momentos finais desse ente querido, de enterrá-lo de maneira digna, muitas vezes sem a pessoa conseguir ver o rosto não realiza aquela situação”. A psicóloga destaca que o luto oriundo da morte pelo coronavírus pode não necessariamente ser mais aprofundado, mas deverá ser mais prolongado. Há um consenso de que o processo de luto dura “normalmente” de 6 meses a 1 ano. Entretanto, as restrições de contato com as vítimas podem gerar sentimentos de incompletude de uma maneira diferente.
Mais de um ano após o primeiro caso confirmado do novo coronavírus no Brasil, a pandemia continua a superar a sociedade brasileira. O retorno à normalidade ainda requer um pouco mais do que algumas vacinas aplicadas e o uso constante do álcool gel. Os esforços não deverão ser feitos apenas para que os indivíduos voltem às salas, aos escritórios, às viagens costumeiras e às festas familiares, mas também para que a sociedade se recupere mentalmente de todas as exaustões que o coronavírus trouxe consigo. As consequências da primeira grande pandemia do século XXI por algum tempo não serão evidentes, porém com a transformação dos dias em noites e dos meses em anos, os efeitos na saúde mental dos brasileiros serão claros com os raios de sol.
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