Entre performances memoráveis e recordes batidos, jovens atletas se consagraram na história do esporte com seus posicionamentos fora das disputas.
Foto: Stefan Wermuth/Reuters
Com uma parte dos jogos sendo de madrugada e uma parcela mínima de torcida presente nos estádios, o sucesso das Olimpíadas de Tóquio entre o público brasileiro era uma incógnita antes do dia 23 de julho de 2021. Excluindo-se os núcleos especializados em esportes, que ansiavam intensamente por uma competição internacional, não parecia existir uma animação tão acentuada para com um torneio de importância inigualável como os Jogos Olímpicos. Imersos em um conglomerado de crises, destacando-se a da Covid-19 a qual levou à óbito mais de 550 mil pessoas, foi fácil esquecer do que aconteceria em meados de 2021, já que a maior preocupação era com o dia-a-dia. Contudo, bastou a entrada de Bruninho e Ketleyn Quadros, de Havaianas no pé e sambando pelo estádio, como porta-bandeiras na cerimônia de abertura para que o público do país se entregasse às emoções das disputas por medalhas.
Foto: André Durão
O futebol, modalidade que no Brasil acaba ofuscando as demais com tanto investimento e visibilidade, não foi o que nas Olimpíadas mais engajou o público. Não que a simpatia da dupla Marta e Formiga ou o carisma de Richarlison tenham sido ineficientes, haja visto a grande audiência em partidas disputadas pelas seleções às 5 horas da manhã, mas a atenção dos brasileiros se espalhou por outros espaços. Com Kevin Hoefler e Rayssa Leal, a torcida se voltou ao skate, que estreou na competição. A tentativa do Comitê Olímpico Internacional (COI) de atrair um público mais jovem se mostrou bem-sucedida logo na primeira noite de disputa. A Fadinha, apelido de Rayssa Leal, que desde sua chegada à Tóquio proporcionou bastidores da Vila Olímpica aos seguidores, recebeu em troca apoio incondicional dos torcedores, os quais duelaram com o sono para conseguirem ver uma menina de 13 anos ser coroada com a medalha de prata. A segunda colocação pode não ter o brilho do ouro, porém é igualmente valiosa nas mãos de Rayssa, que já inspira uma geração de skatistas brasileiras.
Foto: Reprodução / Instagram (@rayssalealsk8)
Da mesma forma que o de Rayssa, é improvável que em algum texto voltado às Olimpíadas o nome “Rebeca Andrade” não apareça. Pelos feitos, ela já merecia estampar capas de revistas e se esbanjar em manchetes de jornal. Mas Rebeca está trazendo algo de volta para o Brasil que não é possível exibir no pescoço como a medalha. Sob os holofotes mundiais, que se voltavam em parte para Simone Biles, Rebeca brilhou - tal qual o ouro, a prata, o bronze - ao som de Baile de Favela. Não importou, para a maioria dos brasileiros, que uma vez ou outra o pé tenha escapado para fora do tablado ou que ela tenha errado um movimento simples, tudo que ela fazia parecia a perfeição. Enquanto os jurados se atentavam para a execução das diversas acrobacias, o sorriso de Rebeca hipnotizava o público de seu país natal. Em um momento prolongado de desesperança, a ginasta brasileira cativou os telespectadores com um som tão característico do Brasil, fazendo com que algo bem próximo do orgulho voltasse a se agitar dentro de cada brasileiro. O legado de Daiane dos Santos estava ali em Tóquio, personificado na jovem de Guarulhos, e foi finalmente premiado com uma medalha olímpica.
Foto: Lisi Niesner
E enquanto Rebeca adquiria um protagonismo pelo talento e simpatia, sua principal adversária informava ao mundo que não disputaria a maior parte das finais. Ao mencionar ginástica, falamos também de Simone Biles, a norte-americana de 24 anos que já conquistou 4 medalhas de ouro em Olimpíadas. Aparentemente saudável e motivada, Biles era nome certo para os pódios no Japão e surpreendeu a todos quando decidiu desistir da final individual da ginástica. Uma lesão era a justificativa esperada para sua ausência, por mais que não minimizasse o sentimento de não vê-la em ação. Ao anunciar que desistiu das finais individuais para preservar sua saúde mental, Simone Biles mostrou que sua história não se resumirá às dezenas de medalhas conquistadas. Não é difícil encontrar histórias de ginastas que competiram lesionadas, seja por contusões leves ou até mesmo dedos quebrados. Uma significativa parte dos esportes construiu uma imagem positiva de atletas que excederam seus próprios limites em busca do triunfo. É possível exaltar os esforços excepcionais do esportista sem incentivar comportamentos nocivos ao atleta. E, quando poderia alcançar mais uma marca inédita, Simone Biles optou por se colocar em primeiro lugar.
Foto: Reprodução / Instagram (@simonebiles)
A atitude da ginasta norte-americana deve reverberar pelos anos e, aos poucos, deverá ganhar ainda mais importância. Nesse meio-tempo, já é evidente o efeito de seu posicionamento. Em homenagem aos oprimidos, Raven Saunders, compatriota de Biles, levantou os braços e os cruzou no formato de X enquanto recebia a medalha de prata no arremesso de peso. Seu protesto, o 1° nos Jogos Olímpicos de Tóquio, desejava destacar a luta dos negros, da comunidade LGBTQIA+ e dos que lidam com questões da saúde mental. Pelas regras do COI, manifestações políticas são permitidas apenas nas coletivas de imprensa, sendo passível de penalidade qualquer ato político durante as premiações. O que o Comitê tem dificuldade em entender é que um protesto político não é apenas estender os braços ou gesticular algo em cima do pódio, Saunders por si só já é um ato político por ser uma atleta negra, lésbica e batalhar contra a depressão. Se antes uma mulher como Raven, atual medalhista de prata, não podia competir em um palco tão importante quanto o olímpico, hoje ela personifica todos que lutaram pela chance de tê-la ali.
Foto: Hannah McKay
A presença de Raven Saunders também exemplifica um dado relevante, levantado pelo site OutSports, de que aproximadamente 160 atletas atuantes no Japão fazem parte da comunidade LGBTQIA+. Para quem sempre se viu representado nas quadras e campos, representatividade ainda é uma palavra com pouco valor. Para os que nunca se sentiram representados, o padrão constantemente propagado pela mídia foi um desestímulo, uma prova de que não era possível chegar à elite do esporte. Ver Raven fazer um X com os braços é representativo e emocionante. Presenciar Quinn, a primeira pessoa trans não-binária a ganhar uma medalha olímpica - a seleção canadense de futebol feminino está na final, tendo seus pronomes respeitados é representativo e fundamental. A diversidade presente em Tóquio faz valer os esforços dos que lutaram por direitos, por respeito e pelo mínimo de dignidade.
Foto: Reprodução / Instagram (@thequinny5)
São muitas personalidades marcantes que se juntam em uma única cidade para não só competir por seus países, mas também por seu povo, pelas suas crenças, pelos seus valores. Se todo o período da pandemia, em função da Covid-19, gerou incertezas e desalento, os Jogos Olímpicos ofereceram uma dose generosa de esperança e de entretenimento, que não se isentou do caráter político ou social. Tóquio 2020 apresentou a resiliência dos indivíduos em sua forma mais pura e - em muitos aspectos - o protagonismo das Olimpíadas não advém do mérito esportivo, e sim da vida que se expande pelas modalidades.
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