Ester Vallim e Nayara Zanetti
Toda instituição possui seu próprio modus operandi, nas rotinas dos hospitais não seria diferente. Geralmente algumas funções seguem um mesmo procedimento, desde o atendimento à cirurgia. Contudo, eis que um ser tão pequeno modifica toda uma estrutura e atinge o motor principal da máquina: as relações humanas. No dia 14 de março de 2020, o primeiro caso de coronavírus em Juiz de Fora foi confirmado pela Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais (SES-MG), causando alerta e preocupação nos profissionais de saúde da região.
Um fenômeno novo tanto para os pesquisadores e profissionais da área da saúde quanto para a população, ocasionou dúvidas e incerteza em relação ao que estaria por vir. “Fiquei extremamente assustada e amedrontada pois até então só tinha escutado falar em pandemia na aula de parasitologia, há muitos anos, quando o professor dizia que pandemia era uma situação que com certeza nunca vivenciaríamos na prática”, explica a enfermeira Rosângela Ferreira
Medo, angústia, incapacidade, cansaço, foram algumas das sensações presentes no dia a dia desses profissionais, mas ao mesmo tempo a fé e a esperança permitiram que Rosângela Ferreira, de 62 anos, acordasse para trabalhar na Unidade Básica de Saúde da cidade de Santos Dumont. “Ao saber da existência de casos veio a sensação de impotência, mas não tínhamos tempo para pensar nisso pois os familiares esperavam em nós, enfermeiros, a solução dos problemas. A impotência se transformou em solidariedade e nós aprendemos a encontrar soluções junto com os familiares. No caso de óbitos foi bem mais difícil. Só quem passou por isso é que consegue definir. Muito triste.”
Rosângela Ferreira Foto: Arquivo pessoal
Logo em seguida as rotinas dos hospitais sofreram adaptações para atender o maior número possível de pessoas com segurança. Wildania Maia, de 42 anos, é enfermeira no Hospital Regional João Penido (HRJP) e no Hospital de Pronto Socorro (HPS) em Juiz de Fora, ela conta que no início faltavam vários recursos, como os equipamentos de proteção individual (EPI), só depois que os materiais chegaram e o treinamento dos profissionais ocorreu. “Hoje a gente se sente um pouco mais seguro para trabalhar aquele medo inicial não temos mais, mas a gente já perdeu muito colegas”
Wildania Maia Foto: Arquivo Pessoal
Em Santos Dumont a situação se repetiu, de acordo com Rosângela as maiores dificuldades foram em relação aos equipamentos de proteção individual, pois não havia quantidade suficiente para todos da equipe e o medo de contrair o vírus era assustador. “Até tudo ser resolvido foi bastante angustiante. Mas tivemos a solidariedade de outras pessoas, nos doaram máscaras e protetor facial”, afirma a enfermeira
A enfermagem está presente na vida de Wildania há 19 anos, mas a vontade de cuidar do próximo é antiga. “A minha mãe sempre fala que eu já nasci com esse dom, desde pequena quando meu irmão se machucava eu que corria para fazer o curativo, para cuidar dele.”
A profissão do ano de 2020 de acordo com a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) e a Organização Mundial da Saúde (OMS) foi a enfermagem, o objetivo da iniciativa era reconhecer e valorizar esses profissionais. Além de realizar uma função que exige dedicação e respeito, o profissional de enfermagem desempenha um papel fundamental na prestação de serviços essenciais de saúde em vários níveis. “Ser enfermeira é abrir mão das próprias necessidades para satisfazer as necessidades dos outros, sejam elas físicas, mentais ou sociais.”, afirma Rosângela
Em seu tempo livre Rosângela gosta de reunir a família e planejar juntos as próximas viagens e passeios. Já Wildania prefere aproveitar sua folga na roda de samba feminina de Juiz de fora, cantando e tocando seus instrumentos. Com a pandemia, essas atividades foram interrompidas e todos esses fatores atingiram diretamente a saúde mental dessas profissionais, que além de estarem expostas aos riscos de contaminação também tiveram sua rede de apoio afetada.
O medo de se contaminar já é por si só assustador. Mas a possibilidade de contrair o vírus e passar ele para algum familiar ou amigo tornou a convivência com a covid-19 muito mais difícil. Convivência com a doença que anulou outra: a com a família. Wildania conta que mora com a mãe e com a filha e que o fato dela trabalhar na linha de frente na pandemia impediu momentos simples e rotineiros, mas muito importantes para ela: “a gente tem costume de almoçar nós três juntas já que eu trabalho em dois hospitais. Seria um tempo nosso, mas agora estamos evitando fazer isso para a segurança delas.” A mãe dela faz parte do grupo de risco da doença por ser diabética e hipertensa. Na vida da técnica de enfermagem, o vírus invisível reflete de forma palpável e quase tangível em pensamentos que persistem: "às vezes eu posso ser assintomática e estar levando a doença para a minha casa, pro outro hospital que eu trabalho”.
Nessa corrida que parece não ter fim, muita gente já se foi. No João Penido, alguns profissionais de saúde ouviram pedidos angustiantes vindo de pacientes. Frases de desespero de quem viu e sentiu o pior da doença. “Eu tive colegas que tiveram pacientes que pioraram pedindo ‘cuida de mim, ora por mim, não me deixa morrer. É um momento muito angustiante você ver uma pessoa pedindo pra cuidar dela e não deixar ela morrer e você não poder fazer nada”, conta Wildania.
Pela perspectiva da ciência, a esperança veio de forma rápida. Mas quem conviveu com o horror todos os dias, lamentou cada um deles sem a solução. E ela veio. A vacina contra a covid-19 foi aplicada pela primeira vez, em Juiz de Fora, no dia 20 de janeiro de 2021, dez meses depois do primeiro caso da doença confirmado na cidade. Uma técnica de enfermagem de 43 anos que trabalha no Hospital Universitário experimentou o alívio na pele. A alegria não só de toda uma categoria, mas do mundo inteiro que viu no meio de tanta incerteza um vislumbre de esperança.
Sobre o momento da vacinação, o sentimento é único e compartilhado por Rosângela, “gratidão e alívio! Agradeci a Deus por isso” e por Wildania “fiquei em um estado de êxtase tão grande, me deu vontade de sair pulando contando para todo mundo”. Apesar da alegria das duas, elas entendem que ainda existem alguns caminhos a serem percorridos: “Minha felicidade só não é completa porque sei que grande parte das pessoas não foram imunizadas, principalmente a minha família onde tenho idosos e pessoas com comorbidades. Mas tenho fé e esperança que em pouco tempo todos serão imunizados” conta Rosângela.
O desejo é que essa esperança que atingiu as duas técnicas de enfermagem alcance todo o mundo e que as relações humanas voltem a girar a engrenagem dessa máquina, trazendo de volta o calor e o abraço que nunca fizeram tanta falta: “quando isso acabar eu quero reunir a minha família inteira durante no mínimo uns dez dias para agradecer a Deus, abraçar muito e colocar a conversa em dia.” deseja Rosângela. “Eu quero entrar numa roda de samba, abraçar e cantar muito, fazer o melhor carnaval da minha vida!” conta Wildania.
Comments